Por Jorge Henrique Anorozo Coutinho,
No presente texto, busca-se analisar a possibilidade de inclusão dos valores escriturados no patrimônio líquido das sociedades limitadas a título de “lucros acumulados” para apuração dos juros sobre o capital próprio (JCP), mesmo diante da ausência de previsão da referida conta contábil no artigo 9º, §8º, da Lei nº 9.249/95.
Os JCP são espécie de remuneração paga ao sócio ou acionista em função de investimento realizado na sociedade, tendo por fundamento “remunerar o investidor pela indisponibilidade dos recursos” [1].
Diante da particularidade do instituto, diversas discussões surgiram acerca de sua natureza jurídica. Segundo o Carf [2], os JCP (para fins tributáveis) se configuram como despesa dedutível [3]. Por outro lado, a CVM, em sua Deliberação de nº 683/2012 [4], entendeu que o instituto possui natureza jurídica de lucro distribuído [5] (para fins societários) — o que é ratificado pelas disposições dos §§1º e 7º do artigo 9º da Lei nº 9.249/95 [6].
Analisando as diversas correntes no bojo do julgamento do REsp n.º 1.373.438/RS, o e. Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento, estabelecendo que o JCP constitui remuneração do sócio de natureza híbrida, porque possui natureza jurídica típica e primordial de lucro a ser distribuído, sendo equiparado, por uma ficção legal, às despesas financeiras para fins tributários. Extrai-se do voto do ministro relator Paulo de Tarso Sanseverino:
“Efetivamente, como bem destacou Requião (supra), a obrigação de pagar juros é uma obrigação certa, que independe do sucesso econômico do devedor, ao passo que a obrigação de distribuir lucro é uma obrigação aleatória, sujeita ao risco do empreendimento, que é da essência do direito societário, não havendo como conciliar essas duas características. […] Desse modo, optando-se por um conceito único de JCP, sacrificam-se, necessariamente, ou os propósitos tributários da Lei 9.249/95, ou os princípios societários, protegidos pelas Deliberações CVM nº 207/96 e 683/12. A melhor solução, portanto, é a cisão dos efeitos produzidos pelo instituto jurídico para efeitos tributários e para efeitos societários. […] Na verdade, ontologicamente, os JCP são parcela do lucro a ser distribuído aos acionistas. Apenas por ficção jurídica, a lei tributária passou a considerar que os JCP têm natureza de juros. Ressalte-se que o Direito Tributário não é avesso a ficções jurídicas, que alteram a natureza de institutos jurídicos.”
Em síntese, portanto, os JCP constituem, ontologicamente [7], parcela do lucro distribuível, tendo a legislação criado uma ficção ao tratá-lo como juro. Destaca-se que não há óbice para a definição de efeitos tributários distintos a determinados institutos de direito privado, consoante expressamente autoriza o artigo 109, CTN [8].
Deste modo, como os JCP se destinam a remunerar o capital investido e os lucros retidos e sendo sua natureza primordial a de lucro distribuível, o seu cálculo deve considerar todas as contas contábeis do patrimônio líquido, exceto a de ajustes de avaliação patrimonial, justamente como forma de refletir a totalidade dos recursos aos quais os sócios ou acionistas de fato não têm acesso.
Em assim sendo, a inclusão dos valores do patrimônio líquido referentes aos “lucros acumulados” na base de cálculo dos JCP se justifica em razão de seu próprio conceito (leia-se, remunerar o sócio pela totalidade dos recursos inacessíveis da sociedade), a despeito de não estar expressamente prevista essa hipótese no artigo 9º, §8º, da Lei nº 9.249/95.
A inexistência da previsão da conta “lucros acumulados” de forma expressa no artigo 9º, §8º, da Lei nº 9.249/95, com efeito, se deve unicamente ao fato de que referida conta deixou de existir na contabilidade das sociedades anônimas [9] a partir de 2007.
Em razão disso, quando promovida a alteração correspondente no artigo 9º, §8º, da Lei nº 9.249/95, o legislador — que se limitou a repisar as contas do patrimônio líquido estabelecidas no artigo 178, inciso III, da Lei das S.A. — deixou de considerar que, para a perspectiva das sociedades limitadas, a conta dos “lucros acumulados” continuou a existir e a representar recursos retidos inacessíveis aos sócios.
Acerca da manutenção da conta “lucros acumulados” nas sociedades limitadas, remete-se ao item 47 da Resolução CFC nº 1.159/2009 e ao item 115 da Resolução CFC nº 1.157/2009:
“47. É válido ressaltar, todavia, que a não-manutenção de saldo positivo nessa conta (Lucros Acumulados) só pode ser exigida para as sociedades por ações, e não às demais sociedades e entidades de forma geral.
115. A obrigação de essa conta (Lucros Acumulados) não conter saldo positivo aplica-se unicamente às sociedades por ações, e não às demais, e para os balanços do exercício social terminado a partir de 31 de dezembro de 2008. Assim, saldos nessa conta precisam ser totalmente destinados por proposta da administração da companhia no pressuposto de sua aprovação pela assembléia geral ordinária.”
A ausência da conta contábil “lucros acumulados” no patrimônio líquido das sociedades anônimas, entretanto, jamais impactou no afastamento dos valores referentes aos lucros retidos e não distribuídos da base de cálculo dos JCP. Isso porque, os lucros acumulados das sociedades de capital são contabilizados na conta reserva de lucros, o que não lhes retira, em qualquer momento, a natureza de lucros retidos. Nesse sentido, bem anota Alexandre Assaf Neto que “lucros ou prejuízos acumulados, são, no fundo, parte das reservas de lucros que ainda não teve seu destino final determinado” [10].
Ratificando que os valores referentes aos lucros não distribuídos integram a base de cálculo dos JCP, cabe destacar que o artigo 9º, §8º, da Lei nº 9.249/95, apenas excluiu os “ajustes de avaliação patrimonial” dentre as contas do patrimônio líquido para cálculo dos JCP — justamente porque estes não representam efetivo valor disponibilizado à sociedade, mas apenas um acréscimo ou decréscimo eventual e futuro [11] (ou seja, não representam valores retidos e não disponíveis aos sócios).
Pode-se dizer, nesse sentido, que, contrario sensu, a própria legislação determina que todas as contas do patrimônio líquido — à exceção dos ajustes de avaliação patrimonial, que não dizem respeito aos resultados da companhia — devem ser consideradas para fins de cálculo dos JCP.
Ainda a título de reforço da conclusão acima apontada, ressalta-se que a redação originária do §8º do artigo 9º da Lei nº 9.249/95 previa que todas as contas do PL que impactam no resultado da companhia devem ser incluídas para cálculo do JCP.
Por sua vez, à época, a Lei das S.A. expressamente previa a existência da conta de lucros ou prejuízos acumulados no patrimônio líquido das sociedades anônimas, consoante a revogada alínea “d” do §2º do artigo 178. Em assim sendo, desde sua origem, o cálculo dos JCP era estabelecido com base também na conta de lucros acumulados, não tendo havido qualquer discussão que indicasse a alteração desses parâmetros quando da inserção das novas normas contábeis em 2007.
Pelo contrário, na Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 627/2013, posteriormente convertida na Lei nº 12.973/2014, que concede a atual redação ao 8º, do artigo 9º, da Lei nº 9.249/95, expressamente foi consignado que a alteração entabulada nesse artigo visava “manter a mesma base de cálculo utilizada na apuração dos juros sobre o capital próprio existente até 2007” [12] — o que importa concluir que os lucros acumulados das sociedades empresárias também devem continuar a ser considerados para apuração da base de cálculo dos JCP, na esteira do que já era adotado anteriormente.
Deste modo, a inclusão da conta Lucros Acumulados na base de cálculo dos JCP para as sociedades limitadas é medida que se impõe, uma vez que 1) apenas considerando esses valores se pode definir a real quantia dos recursos retidos a serem remunerados aos sócios; 2) a conta “reservas de lucros” para fins da sociedade anônima abrange também os lucros retidos e não distribuídos, de modo que os lucros acumulados para as sociedades de capital continuam a ser incluídos na base de cálculo do JCP; 3) apesar das alterações das normas contábeis, o legislador expressamente consignou que a forma de cálculo dos JCP não seria alterada, razão pela qual se justifica a manutenção dos lucros acumulados (como era feito antes da reforma de 2007) na base de cálculo da referida remuneração.
Qualquer entendimento diverso, inclusive, afrontaria o conceito e função do instituto dos JCP (vez que se estaria excluindo de sua base de cálculo valores do resultado da sociedade indisponíveis aos sócios), bem como o princípio da isonomia, uma vez que, como já adiantado, os lucros acumulados das sociedades anônimas continuam a ser incluídos na base de cálculo dos JCP, apenas sendo contabilizados como reserva de lucros.
[1] COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direto de empresa. 20ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 337.
[2] Acórdão nº 1301-000.480 – 1ª Turma Ordinária – 3ª Câmara – 1ª Seção de Julgamento
[3] Nesse sentido, o art. 30, parágrafo único, da IN SRF n.º 11/1996: Parágrafo único. Para efeito de dedutibilidade na determinação do lucro real, os juros pagos ou creditados, ainda que imputados aos dividendos ou quando exercida a opção de que trata o § 1º do artigo anterior, deverão ser registrados em contrapartida de despesas financeiras.
[4] 11. Assim, o tratamento contábil dado aos JCP deve, por analogia, seguir o tratamento dado ao dividendo obrigatório. O valor de tributo retido na fonte que a companhia, por obrigação da legislação tributária, deva reter e recolher não pode ser considerado quando se imputam os JCP ao dividendo obrigatório.
[5] Cabe referenciar a lição de Bulhões Pedreira, que expressamente anota que “os juros sobre o capital social pagos ou creditados aos sócios são lucros distribuídos, pois os sócios não são credores da sociedade, mas titulares de direito de participar no lucro” (PEDREIRA, J. L. Bulhões apud ANDRADE FILHO, Edgar de Oliveira. Perfil jurídico do juro sobre o capital social no direito tributário e no direito societário. São Paulo: MP Editora, 2006, p. 12)
[6] Art. 9º A pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP).
1º O efetivo pagamento ou crédito dos juros fica condicionado à existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados. […]
7º. O valor dos juros pagos ou creditados pela pessoa jurídica, a título de remuneração do capital próprio, poderá ser imputado ao valor dos dividendos de que trata o art. 202 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sem prejuízo do disposto no § 2º.
8o. Para fins de cálculo da remuneração prevista neste artigo, serão consideradas exclusivamente as seguintes contas do patrimônio líquido:I – capital social;II – reservas de capital; III – reservas de lucros; IV – ações em tesouraria; e V – prejuízos acumulados.
[7] Consoante descreve o dicionário Houaiss, ontologia é a “parte da filosofia que estuda as propriedades mais gerais do ser, independentemente de suas determinações particulares”. Referenciar a natureza jurídica dos Juros sobre Capital Próprio no plano ontológico, portanto, é determinar sua existência no mundo e a natureza do seu ser na realidade. Em resumo, o e. STJ definiu que a natureza primordial dos JCP é de lucro distribuível, havendo apenas por uma ficção sua aproximação à noção de despesa dedutível.
[8] FERNANDES, Fabiana Carsoni. Distribuição de juros sobre o capita próprio desproporcional à participação do sócio ou acionista no capital social. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 19, n. 112, p. 49-80, jul./ago. 2021. Disponível em: <https://www.marizadvogados.com.br/wp-content/uploads/2022/10/Art-12-2022.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2023.
[9] Tal alteração se deu em razão da disposição do art. 202, §6.º, da Lei das S.A., o qual expressamente estabelece que “os lucros não destinados nos termos dos artigos 193 a 197 (Reservas de Lucros) deverão ser distribuídos como dividendos”. Não há, contudo, previsão em igual sentido para as sociedades limitadas.
[10] ASSAF NETO, Alexandre. Finanças Corporativas e Valor. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 101.
[11] Nesse sentido, destaca-se a lição de Ariovaldo dos Sandos, Sérgio de Iudícibus e Elise Martins de que “A conta Ajustes de Avaliação Patrimonial foi introduzida na contabilidade brasileira pela Lei no 11.638/2007 para receber as contrapartidas de aumentos ou diminuições de valor atribuído a elementos do ativo e do passivo, em decorrência de sua avaliação a valor justo, enquanto não computadas no resultado do exercício em obediência ao regime de competência. […] Cabe salientar que a conta Ajustes de Avaliação Patrimonial não corresponde a uma conta de reserva de lucros, uma vez que seus valores ainda não transitaram pelo resultado. Assim, ela não deverá ser considerada quando do cálculo do limite referente à proporção das reservas de lucros em relação ao capital. Como regra geral, os valores registrados nessa conta deverão ser transferidos para o resultado do exercício à medida que os ativos e passivos forem sendo realizados” (Manual de Contabilidade Societária: Aplicável a todas as sociedades. São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 310 (E-booK).
[12] “Tendo em vista que as novas regras contábeis trouxeram grandes modificações na composição do patrimônio líquido, a alteração do §8º do art. 9º visa manter a mesma base de cálculo utilizada na apuração dos juros sobre o capital próprio existente até 2007, definindo as contas que poderão ser consideradas no cálculo”.
Jorge Henrique Anorozo Coutinho é advogado, sócio do escritório Jorge Ponsoni Anorozo & Advogados Associados, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrando em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR).