Kiyoshi Harada
A partir da legislação do município de São Paulo, que passou a distinguir as sociedades uniprofissionais das sociedades pluriprofissionais, quase todos os municípios componentes da Federação Brasileira passaram a adotar essa distinção que não existe na lei de regência nacional do ISS.
A questão da tributação por alíquotas fixas das sociedades de profissionais legalmente regulamentadas deve ser examinada à luz do que dispõe o § 3º, do art. 9º, do decreto-lei 406, de 31-12-68, que está em plena vigência.
Como se sabe, esse decreto-lei foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 na redação conferida pela lei complementar 56, de 15 de dezembro de 1987, cujo art. 2º conferiu nova redação ao § 3º, do art. 9º, do decreto-lei 406/68. Para clareza transcrevemos, também, o § 1º a que faz referência o citado § 3º:
“§ 1º – Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.
…
§ 3° Quando os serviços a que se refere os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.”
Esses itens correspondem aos seguintes serviços:
1. Médicos, inclusive análises clínicas, eletricidade médica, radioterapia, ultra-sonografia, radiologia, tomografia e congêneres;
4. Enfermeiros, obstetras, ortópticos, fonoaudiólogos, protéticos (prótese dentária);
8. Médicos veterinários;
25. Contabilidade, auditoria, guarda-livros, técnicos em contabilidade e congêneres;
52. Agentes da propriedade industrial;
88. Advogados;
89. Engenheiros, arquitetos, urbanistas, agrônomos;
90. Dentistas;
91. Economistas;
92. Psicólogos;
Importante assinalar que o STF reconheceu a recepção pela CF/88 os 1º e 3º, do decreto-lei 406/68, conforme sua súmula 663:
Os §§ 1º e 3º do art. 9º do decreto-lei 406/68 foram recebidos pela Constituição.
A nova lei de regência nacional do ISS, lei complementar 116 de 31 de julho de 2003, manteve a tributação privilegiada dos profissionais liberais convencido de sua importância no contexto social. Daí a não revogação do art. 9º e parágrafos do decreto-lei 406/68 que continua regendo a matéria.
Como se vê do § 3º, do art. 9º retrotranscrito, para fruição do regime tributário especial, exige-se tão somente que os serviços prestados pela sociedade sejam aqueles taxativamente elencados em seu bojo e que os profissionais assumam a responsabilidade pessoal pelos serviços, nos termos da legislação aplicável.
A expressão “forem prestados por sociedades, estas ficarão…” está a indicar que a lei de regência nacional nenhuma distinção fez entre a sociedade pluriprofissional e a sociedade uniprofissional, esta última uma criação da legislação local.
Ora, uma das regras da hermenêutica é a de que o intérprete não deve distinguir onde o legislador não fez a distinção.
O legislador nacional, sem sombra de dúvida, conferiu tratamento tributário privilegiado aos serviços discriminados no § 3°, do art. 9°, do decreto-lei 406/68, prestados por profissionais liberais e por sociedades por eles formadas.
Se assim é, não há como entender que a sociedade constituída por profissionais de ramos de atividades diferentes não goza do regime especial, apesar de todos os sócios, individualmente, estarem amparados pelo regime de tributação especial. Não há lógica nesse tipo de raciocínio. Se todos os profissionais liberais referidos no texto legal estão sob o amparo do regime especial, a sociedade por eles constituída, também, gozará do mesmo regime tributário.
À luz da ordem constitucional antecedente o STF firmou jurisprudência não distinguindo a sociedade pluriprofissional da sociedade uniprofissional para efeito de enquadramento no regime especial de tributação
Nesse sentido, a remansosa jurisprudência do STF, cujos acórdãos foram proferidos sob a égide da EC 1/69, quando a matéria concernente à negativa de vigência de lei Federal era de sua competência (art. 119, III, a), conforme ementas abaixo:
“Imposto sobre serviços. decreto-lei 406/68, art. 9, parágrafo 3º (redação do decreto-lei 834/69). – Nega vigência a tais dispositivos a decisão que os considera aplicáveis tão somente a sociedades civis constituídas exclusivamente de profissionais de uma mesma categoria, pois a lei federal em causa não autoriza a distinção pretendida pelo fisco municipal. A hipótese de incidência contempla a sociedade civil prestadora de serviços profissionais de caráter interdisciplinar. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE 91.311, rel. min. Rafael Mayer, DJ de 21-12-79, p. 09667).
“Imposto sobre serviços. Sociedade civil de profissionais de qualificações diversas. Tratamento tributário favorecido (art. 9º, pars. 1º e 3º do DL 406/68, modificado pelo DL 834/69). Ausência de afronta a lei federal, que não autoriza a distinção pretendida pelo fisco municipal. Precedente do STF (RE 81.193, DJ 17.3.78). Recurso extraordinário não conhecido” (RE 88.531, rel. min. Xavier de Albuquerque, DJ de 25-4-1978, p. 02627).
“Imposto sobre serviço. Sociedade civil, composta de profissionais de qualificações diversas, que prestam serviços mistos. Calculo do imposto. Ausência de afronta a Lei Federal. Recurso extraordinário não conhecido” (RE 81.193, rel. min. Bilac Pinto, DJ de 17-2-1978).
“Imposto sobre serviços. Sociedade civil. Profissionais de qualificações diversas. Benefício fiscal. Decreto-lei 406/68, art. 9º, par-3º (redação do Decreto-lei 834/69). O art. 9º, par. 3º. c/c o art. 1º do DL. 406/68 (redação do DL 834/69). Assegura a tributação do ISS, na forma fixa, quer as sociedades uniprofissionais, quer as pluriprofissionais. Precedentes do STF. Recurso extraordinário não conhecido” (RE 96.475, rel. min. Rafael Mayer, DJ de 4-6-1982, p. 05463).
Com a criação do STJ pela Constituição de 1988 houve uma reviravolta na jurisprudência firmada pelo STF que perdeu a competência para conhecer da questão relacionada à negativa de vigência de lei federal.
Porém, a partir de 2014 o STJ está retomando a antiga jurisprudência do STF centrando na tese de que o que caracteriza a incidência do regime especial de tributação do ISS é a prestação de serviços em caráter pessoal dos sócios da sociedade uni ou pluriprossional, de sorte a afastar o caráter empresarial. Nesse sentido as ementas abaixo:
“TRIBUTÁRIO. ISS. ART. 9º, §§ 1º e 3º, DO DECRETO LEI 406/68. SOCIEDADE PLURIPROFISSIONAL DE ARQUITETOS E ENGENHEIROS. INEXISTÊNCIA DE CARÁTER EMPRESARIAL. RECOLHIMENTO DO ISS SOBRE ALÍQUOTA FIXA. POSSIBILIDADE. CONCLUSÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM COM BASE EM FATOS E PROVAS DOS AUTOS. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ. 1. O Tribunal a quo ao analisar os fatos e as provas dos autos, concluiu que a parte agravada não apresenta natureza de organização empresarial, permitindo o recolhimento do ISS sobre alíquota fixa. A alteração destas conclusões demandaria, necessariamente, novo exame do acervo fático-probatório constante dos autos, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto na súmula 7/STJ. Precedente. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no REsp 1486568 / RS, rel. min. Sérgio Kukina, Dje de 13-11-14).
“TRIBUTÁRIO. ISS. ARTIGO 9º, PARÁGS. 1º E 3º, DL 406/68. SOCIEDADE SIMPLES PLURIPROFISSIONAL DE ADVOGADOS E CONTADORES. INEXISTÊNCIA DE CARÁTER EMPRESARIAL. SERVIÇO PRESTADO DE FORMA PESSOAL. RECOLHIMENTO DO ISS SOBRE ALÍQUOTA FIXA. POSSIBILIDADE. 1. O que define uma sociedade como empresária ou simples é o seu objeto social. No caso de sociedades formadas por profissionais intelectuais cujo objeto social é a exploração da respectiva profissão intelectual dos seus sócios, são, em regra, sociedade simples, uma vez que nelas faltarão o requisito da organização dos fatores de produção, elemento próprio da sociedade empresária: doutrina do professor ANDRÉ LUIZ SANTA CRUZ RAMOS (Direito Empresarial Esquematizado, São Paulo, Método, 2014). 2. Ambas as Turmas que compõem a Primeira Seção entendem que o benefício da alíquota fixa do ISS somente é devido às sociedades uni ou pluriprofissionais que prestam serviço em caráter personalíssimo sem intuito empresarial. Precedentes. 3. No caso, tratando-se de sociedade em que o objeto social é a prestação de serviços técnicos de consultoria e de assessoria, prestados diretamente pelos sócios, em que o profissional responde pessoalmente pelos serviços prestados, faz jus ao recolhimento do ISS na forma do art. 9º, parágs. 1º e 3º do DL 406/68. 4. Recurso Especial provido para reconhecer o direito da recorrente ao recolhimento do ISS com base no art. 9º, parágs. 1º e 3º. do DL 406/68. Invertido os ônus sucumbenciais.” (REsp 1512652/RS, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 30-3-15).
Na mesma linha, a jurisprudência do TJ/SP, conforme ementa abaixo:
“TRIBUTO – ISS – Município de São Roque – Pretensão da contribuinte de, na condição de sociedade profissional, cujos sócios prestam serviços sob responsabilidade pessoal, recolher o imposto sobre valor fixo, nos termos dos §§ 1º e 3º do art. 9º do decreto-lei 406/68 – Ação anulatória c/c declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária julgada improcedente – Suficiência de provas documentais acerca da condição da interessada de sociedade beneficiária do pretendido tratamento – Hipótese de correlação entre as atividades dos sócios, embora não haja identidade de profissão – Habilitação de ambos para a prestação de serviços na área da saúde – Recurso provido.” (Apelação 0008616-35.2012.8.26.0586, rel. des. Erbetta Filho, j. 30-4-15).
Penso que o avanço da jurisprudência dos tribunais decorreu do abuso do fico municipal de São Paulo que, além de alijar as sociedades pluriprofissionais do regime especial de tributação, vem criando “n” empecilhos na tributação de sociedades uniprofisionais promovendo o seu desenquadramento da SUP ora porque o contrato social contém a palavra “Ltda.”; ora porque o contrato social está registrado na JCSP; ora porque a sociedade possui um engenheiro civil e outro industrial; ora porque engenheiros e arquitetos são regidos por Conselhos Regionais diferentes, pelo que não podem compor a mesma sociedade; ora porque a sociedade possui grande quantidade de empregados; ora porque a sociedade apresenta faturamento grande, revelador de estrutura empresarial etc.
Kiyoshi Harada é sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT