45 (PEC 45) que tem gerado grandes discussões é a instituição do dito imposto seletivo, previsto no novo inciso VIII do artigo 153 da Constituição, que estabelece a competência da União para instituir imposto sobre a “produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei”.
Neste artigo analisaremos algumas das principais controvérsias a respeito deste novo imposto, a começar pela referência que tem sido a ele feita como imposto seletivo.
Imposto seletivo ou extrafiscal?
Em minha produção teórica tenho preferido dar mais atenção à substância dos fenômenos jurídicos do que à sua nomenclatura. Isso não quer dizer, contudo, que os conceitos jurídicos sejam irrelevantes, ou que não devamos, ao nos referirmos às realidades jurídicas buscar conceituá-las da forma mais precisa possível.
Na experiência brasileira, a seletividade tem sido utilizada como uma técnica legislativa dos tributos sobre o consumo que procura diferenciar a incidência sobre contribuintes com base no tipo de consumo, mais ou menos essencial. Diante da dificuldade que esses tributos apresentam para a utilização da capacidade contributiva como critério de diferenciação e alocação da carga tributária, a essencialidade é usada como método de diferenciação.
O imposto incluído no inciso VIII do artigo 153 não é seletivo nesse sentido, até porque a seletividade é um critério comparativo entre consumos em função de sua essencialidade, e o novo imposto tem como referência não a essencialidade, mas o caráter prejudicial à saúde ou ao meio ambiente. É possível, inclusive, que se tenha um consumo essencial que seja, ao mesmo tempo, prejudicial ao meio ambiente, por exemplo.
Em tese, seria possível cogitar de uma seletividade baseada não na essencialidade do consumo, mas nas externalidades negativas dos bens ou serviços. Contudo, ainda assim, parece-nos estranho pensar em um imposto em si seletivo, já que, como apontamos, vemos a seletividade como um critério de diferenciação dentro do tributo.
Portanto, acreditamos que estamos, em verdade, diante de um imposto extrafiscal, de finalidade indutora, que visa utilizar a tributação de forma regulatória, com foco em bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Inclusive, esta caracterização faz mais sentido quando pensamos no regime especial proposto para este tributo, no que se refere às regras da legalidade e da anterioridade.
De todo modo, como se tem chamado este imposto de imposto seletivo (IS), no resto deste texto seguiremos utilizando esta nomenclatura.
Imposto que não pode arrecadar?
Uma das críticas que têm sido feitas ao IS é que ele tem uma materialidade muito ampla e poderia, portanto, ser utilizado “para fins arrecadatórios”.
Ora, como temos sustentado, arrecadar recursos para os cofres públicos é função inerente a qualquer imposto, mesmo aqueles que têm objetivos extrafiscais. Um imposto que não arrecada é uma contradição de termos. Consequentemente, não vemos qualquer problema em que o IS venha a ser utilizado “para fins arrecadatórios”, como se diz no discurso público. Como já defendemos, analisando o IPI:
“Com isso, queremos dizer que o IPI e o Imposto de Renda não são diferentes entre si no que se refere ao seu papel fiscal. Não há nada na Constituição que estabeleça que o IPI deva ser utilizado, principalmente, para fins extrafiscais, ou que ele tenha um papel arrecadatório secundário. A Lei Maior apenas estabeleceu um regime específico — para o IPI, o II, o IE e o IOF — que permite que sejam utilizados também para outros fins. Contudo, esse fato não lhes retira a função fiscal — nem mesmo significa que haja — de uma perspectiva constitucional — uma primazia de sua função extrafiscal.” [1]
Por outro lado, conforme mencionamos e analisaremos adiante, o IS estaria sujeito ao regime próprio dos impostos regulatórios. Segundo a PEC 45, ele estaria entre os impostos não sujeitos à regra da anterioridade e cuja legalidade é mitigada. [2] Esse regime especial somente deveria ser aplicado nas situações nas quais o IS seja utilizado em sua finalidade extrafiscal. Nada obstante, não vemos qualquer óbice a que este novo imposto venha a ser usado para aumento de arrecadação, caso seja necessário. Neste caso, o aumento deveria ser aprovado por lei, com a observância da regra da anterioridade.
O imposto seletivo é mesmo necessário?
A PEC 45, em sua versão original, tenha como premissa uma neutralidade plena da tributação de bens — inclusive intangíveis — e serviços, os quais seriam, todos, sujeitos à mesma incidência, sem exceções ou benefícios fiscais. No contexto desse modelo de neutralidade absoluta, o IS tinha um papel. Pode ser, inclusive, que venha daí sua denominação de imposto seletivo. Afinal, ele serviria para estabelecer alguma diferenciação no âmbito do próprio Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) que, em sua proposta inicial, seria completamente neutro.
Sobreveio a Proposta de Emenda Constitucional nº 110 (PEC 110) e a neutralidade do IBS sofreu a sua primeira mitigação, com a previsão de tratamento diferenciado para alguns setores como, por exemplo, alimentos, saúde e educação.
A PEC 45, na forma aprovada pela Câmara dos Deputados, implodiu a neutralidade pretendida para o IBS, com a criação de diversas exceções e possibilidades de regimes diferenciados favorecidos.
Ora, nesse contexto, em que o ideal de neutralidade plena do IBS já foi abandonado, não vemos razão para que a incidência diferenciada para bens e serviços com externalidades negativas relacionadas à saúde e ao meio ambiente não seja feita no âmbito do próprio IBS.[3]
Com efeito, se foi possível a criação de diversos regimes favorecidos, parece-nos que o modelo conviveria, sem maiores crises de identidade, com regimes desfavorecidos, em que a incidência seria mais gravosa.
O debate que se colocaria, aqui, é o da simplicidade, que é uma das pautas axiológicas da reforma. O que é mais simples, criar exceções bem delimitadas no próprio IBS, de modo que este possa incidir com alíquotas mais elevadas sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, ou criar um imposto novo, que incidiria em paralelo aos demais, gerando toda uma carga de administração tributária, compliance e, futuramente, contencioso?
Esta pergunta pode ter respostas diferentes, a depender da visão do interlocutor. Pessoas com uma visão mais neutra do IVA podem ter dificuldade em aceitar que ele seja marcado por mais exceções. Por outro lado, há um grande desconforto com o novo IS e com a amplitude da competência que o inciso VIII, do artigo 153, conforme a PEC 45, outorga à União, de modo que provavelmente haverá quem prefira um sistema tributário em que o IS não exista.
Mantida a opção do legislador brasileiro pela neutralidade mitigada do IBS, tendo a crer que o melhor caminho seria a eliminação do IS e a tributação mais elevada de bens — inclusive intangíveis — e serviços danosos à saúde e ao meio ambiente por meio do próprio IBS. Por outro lado, caso o direcionamento do debate no Senado seja pela eliminação de exceções e maior neutralidade do IBS, talvez faça mais sentido mesmo a manutenção do IS como um tributo independente.
Exceção às regras da anterioridade e da legalidade
A PEC 45 altera o § 1º do artigo 150, para estabelecer que o IS será uma exceção à regra da anterioridade do exercício financeiro, da mesma maneira que modifica o § 1º do artigo 153 para prever que suas alíquotas possam ser alteradas por ato do Poder Executivo, juntando-se, portanto, aos demais impostos da União que têm na extrafiscalidade regulatória uma de suas funções (é o caso do Imposto de Importação (II), do Imposto de Exportação (IE), do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF)).
Aqui, cremos ser importante considerar a seguinte questão: o que legitima tal regime? O caráter marcadamente extrafiscal que justifica o regime constitucional diferenciado do II, do IE, do IPI e do IOF, ou o tipo de intervenção regulatória que se pretende com esses impostos?
Parece-nos que há respostas distintas para essa pergunta, considerando a anterioridade e a legalidade.
Em relação à regra da anterioridade, cremos que não é a extrafiscalidade em si que legitima o tratamento excepcional, mas sim o tipo de regulação a que se prestam esses impostos, que requerem iniciativas urgentes de intervenção econômica, monetária, de comércio exterior etc., as quais não podem esperar para ser implementadas.
Seguindo essa linha de considerações, e tendo em conta os objetivos do IS, não vemos, na regulação de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente urgência regulatória que impossibilite que sua modificação respeite de forma integral a regra da anterioridade.
Por outro lado, em relação à regra da legalidade, uma vez que, segundo a própria redação do § 1º do artigo 153, a alteração das alíquotas do IS por ato do Poder Executivo se daria atendidas as condições e limites estabelecidos em lei, não vemos maiores problemas na alteração das alíquotas do IS por meio de ato do Poder Executivo. Essa posição está alinhada à nossa visão sobre a possibilidade de delegação de competências em matéria tributária, a qual, segundo vemos, não encontra restrições na Constituição.
Portanto, de modo a compatibilizar o IS com o princípio da segurança jurídica, cremos que o ideal seria a manutenção do IS entre as exceções à regra da legalidade, no § 1º do artigo 153, mas a exclusão da referência ao IS no § 1º do artigo 150, aplicando-se a este imposto, integralmente, a regra da anterioridade.
Em linha com o que defendemos anteriormente, seria importante a inclusão de dispositivo, tanto no artigo 150 quando no artigo 153, prevendo que esse regime excepcional do IS — e dos demais tributos regulatórios — somente seria aplicável nas situações em que sua alteração fosse motivada — expressamente — pelas razões extrafiscais previstas em lei.
A materialidade constitucional do IS
Como já mencionamos, o IS pode incidir sobre a “produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei”.
A redação proposta para o inciso VIII do artigo 153 da Constituição poderia ser mais clara em alguns aspectos.
Em primeiro lugar, o imposto pode incidir sobre a produção, a comercialização e a importação. A referência à produção e importação de um lado, e à comercialização de outro, gera desconforto por possibilitar a incidência do IS em cadeia, de modo que se poderia ter um imposto cumulativo a onerar a cadeia de circulação de determinados bens e serviços. Pode-se argumentar que não é essa a intenção, porém, a questão não é o que se pretende, mas o que o texto permite que se faça.
De outra parte, o imposto pode incidir sobre bens e serviços. Ora, serviços podem ser importados, mas não se diz, usualmente, que eles são produzidos ou comercializados. Portanto, seria mais adequado se fazer referência, neste inciso VIII, à prestação como uma das atividades tributáveis pelo IS.
Ademais, diferentemente do que ocorre em relação ao IBS, que expressamente prevê que o conceito de bens inclui intangíveis, inclusive direitos, o IS parece um imposto do século 21 que tem como referencial a economia industrial do século 20. O futuro — talvez já o presente — é dos intangíveis. Se é mais difícil antever a possibilidade de intangíveis que sejam danosos ao meio ambiente — embora seja surpreendente o que não conseguimos prever — certamente intangíveis danosos à saúde já são uma realidade.
Portanto, parece-nos estranho limitar o IS a atividades com bens tangíveis e com serviços. A mesma lógica de neutralidade que pauta o IBS deveria, de alguma maneira, ser utilizada no IS, no sentido de que ele possa incidir sobre quaisquer bens — mesmo que intangíveis — ou serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.
De toda forma, há um aspecto final, que talvez seja o mais complexo de todos, que é a abrangência da finalidade que legitima a instituição do IS: tributar bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
A amplitude potencial dessa expressão é inegável. Afinal, quase tudo que consumimos de brinquedos infantis, passando por cadernos escolares e computadores, a veículos automotores têm externalidades ambientais negativas. Da mesma forma, muitos dos alimentos que consumimos geram danos à saúde. Portanto, as possibilidades de incidência do IS são bastante amplas.
A questão que se coloca, então, é se a amplitude da materialidade do IS seria, em si, um problema.
De um lado, há, no Brasil, essa tradição constitucional de delimitação de competências tributárias na Constituição. Contudo, reconhece-se que esta está longe de ser uma prática em termos globais. Nesse particular, somos a exceção, não a regra.
A PEC 45, ao prever uma materialidade ampla para o IS está delegando ao Poder Legislativo a competência para definir seus contornos, como, de resto, deveria se passar com os demais tributos. A patologia é o alto grau de detalhamento constitucional, que nos legou esse contencioso tributário monumental, e não a amplitude atribuída no caso do IS.
Assim sendo, nesse particular a abertura textual do inciso VIII do artigo 153, conforme proposto pela PEC 45, pode ser acolhida como uma mudança de paradigma, deixando de lado a perspectiva de hipercristalização de materialidades da Constituição, em prestígio à competência do legislador infraconstitucional em matéria tributária.
Se a materialidade prevista no inciso VIII do artigo 153 é bastante abrangente, o fato é que a própria PEC 45 traz dispositivos que podem podá-la para além do que se pretendia com o IS.
Com efeito, o artigo 9º da PEC 45 lista, em seu § 1º, os bens e serviços que terão alíquotas reduzidas do IBS e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), entre os quais encontramos no inciso VII, os “alimentos destinados ao consumo humano”. Por sua vez, o § 9 deste mesmo artigo 9º estabelece que o IS não incidirá sobre bens e serviços que tenham tido a alíquota reduzida. Conjugando-se esses dois parágrafos, temos que o IS não pode incidir sobre alimentos destinados ao consumo humano.
Ora, o que são alimentos destinados ao consumo humano? Bebidas são alimentos? Vinho é um alimento destinado ao consumo humano? É possível que a PEC 45 esteja, ela mesma, mutilando o IS em relação a bens que se pretenderia alcançados pelo novo imposto.
IS e a Zona Franca de Manaus
O regime fiscal da Zona Franca de Manaus tem razões político-econômicas que não nos cabe rever neste artigo. Contudo, há um aspecto específico que temos que comentar.
Segundo a redação proposta para o § 1º do artigo 92-B do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o IS poderia ter sua incidência ampliada, “para alcançar a produção, comercialização ou importação de bens que também tenham industrialização na Zona Franca de Manaus ou nas Áreas de Livre Comércio referidas no caput, garantido tratamento favorecido às operações originadas nessas áreas incentivadas”.
Percebe-se que o que este dispositivo faz é atribuir ao IS uma função indutora completamente desconectada das finalidades previstas no inciso VIII do artigo 153 da Constituição.
Não há dúvidas de que uma tributação completamente neutra não é factível. Contudo, regras como a que ora examinamos podem gerar distorções e induções às atividades econômicas que não se justificam. A manutenção do regime fiscal da Zona Franca, se é mesmo um objetivo legítimo e justificável, não deveria ser feita às custas da se distorcer a estrutura constitucional do IS.
Entre a intenção e as possibilidades interpretativas do texto
Como mencionamos logo no início deste breve artigo, há uma série de preocupações e dúvidas em torno do IS. Normalmente, quando se leva algumas dessas críticas à equipe responsável pelo desenho da reforma tributária, escuta-se que os objetivos não são de utilização do novo imposto com fins arrecadatórios e que ele será bem delimitado na sua lei instituidora.
Contudo, a questão que se deve considerar é que a preocupação não é, necessariamente, com as intenções da equipe econômica atual, ou com a lei que instituirá o IS pela primeira vez. Uma vez que a competência tenha sido inserida na Constituição, e imaginando-se que se pretende que os dispositivos constitucionais tenham alguma perenidade, não há qualquer garantia sobre como ela será utilizada pelo legislador do futuro. Quem pode prever o contexto brasileiro e mundial em 10 anos ou em 20 anos?
É impossível garantir como a competência para a instituição do IS será exercida no futuro. Assim sendo, é demasiado importante que algumas as premissas que estão pautando a criação deste novo imposto sejam debatidas de forma transparente neste momento, para que os ideais de neutralidade e simplicidade, que pautam a reforma tributária, não possam ser atropelados adiante.
[1] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022. p. 114-115.
[2] Nos referimos, aqui, à possibilidade de modificação das alíquotas destes tributos por meio de decreto, atendidas condições e limites estabelecidos em lei (artigo 153, § 1º, da Constituição Federal) e ao regime especial de eficácia das mudanças legislativas que agravam a situação dos contribuintes, conforme previsto no § 1º do artigo 150 da Constituição Federal.
[3] Ao nos referirmos ao IBS estamos considerando, igualmente, a Contribuição sobre Bens e Serviços.
Sergio André Rocha é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.