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O julgamento do tema 796 pelo STF e sua inaplicabilidade às holdings rurais

Deivison Roosevelt do Couto

O presente artigo tem por objetivo analisar o julgamento do tema 796 pelo STF, em especial o seu alcance, no que diz respeito à imunidade tributária do ITBI, e sua inaplicabilidade na constituição das chamadas holdings rurais.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

No dia 04 de agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do tema 796, com repercussão geral, que cuida do alcance da imunidade tributária do ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da CF/88, sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, quando o valor total desse bens excederem o limite do capital social a ser integralizado.

Na ocasião, o Pleno do Pretório Excelso, por maioria, negou provimento ao RE 796.376/SC, nos termos do voto do eminente ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos os preclaros ministros Marco Aurélio (Relator), Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, fixando-se a seguinte tese: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”

Diante disso, indaga-se: esse precedente é aplicável na constituição das chamadas holdings rurais?

Não. Explica-se, sem maiores divagações, e indo diretamente ao que interessa.

Na constituição das holdings rurais, via de regra, as pessoas físicas, a título de integralização de capital, transferem, totalmente, os seus imóveis, pelos valores constantes da respectiva declaração de bens, conforme expressamente determina o art. 23 da lei 9.249/95 – in verbis:

“Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.”

Não obstante, a maior parte dos municípios, numa grande confusão, e ignorando completamente esse dispositivo legal, entende que não ocorre a transferência total dos imóveis rurais na constituição das holdings rurais, e vem exigindo, inadvertidamente, o ITBI em razão da diferença entre o valor de mercado e o valor constante da declaração dos bens integralizados, o que se afigura inconstitucional, pois vai de encontro ao disposto no art. 156, §2º, I, da CF/88, que de forma clara, como água potável da fonte, estabelece – ipsis litteris:

Art. 156. Compete aos municípios instituir impostos sobre:

(…)

2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil; – negritado.

Sem embargo da repetição, perceba a clareza do aludido dispositivo constitucional ao fixar que o ITBI não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital. E é exatamente isso que se verifica na constituição das holdings rurais, não havendo, saliente-se, uma transmissão parcial de bens.

Com efeito, conforme já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal, em se tratando de imunidade tributária, a interpretação deve ser restritiva. Nesse sentido: RE 566.259, relator(a): Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 12/8/10, Repercussão Geral – MÉRITO DJe-179 DIVULG 23/9/10 PUBLIC 24/9/10 EMENT VOL-02416-05 PP-01071.

Portanto, insista-se, se houve a transmissão total de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, a imunidade tributária há de ser reconhecida no particular.

E por que o julgamento do tema 796 não se aplica às holdings rurais?

Simples. Porque envolve outras circunstâncias, segundo se vê dos seguintes trechos do voto do eminente ministro Alexandre de Moraes – ad verbum:

“Revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo – como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital.

(…)

Disso decorre, logicamente, que, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o valor do capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI, pois a imunidade está voltada ao valor destinado à integralização do capital social, que é feita quando os so’cios quitam as quotas subscritas.

Por outro lado, nada impede que os sócios ou os acionistas contribuam com quantia superior ao montante por eles subscrito, e que o contrato social preveja que essa parcela será classificada como reserva de capital. Essa convenção se insere na autonomia de vontade dos subscritores.

O que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal.

Ainda que o preceito constitucional em apreço tenha por finalidade incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o desenvolvimento das empresas, não chega ao ponto de imunizar imo’vel cuja destinação escapa da finalidade da norma.

No caso concreto, a diferença entre o valor do capital social e os imóveis incorporados é de R$ 778.724,00. É de indagar-se a razão pela qual uma empresa, cujo capital social é de R$ 24.000,00, pretende constituir uma reserva de capital em montante tão superior ao seu capital, e, sobretudo, livre do pagamento de imposto.

Assim, não cabe conferir interpretação extensiva à imunidade do ITBI, de modo a alcanc¸ar o excesso entre o valor do imo’vel incorporado e o limite do capital social a ser integralizado.” – negritado.

Note que o julgado em questão envolve o caso de imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica que não são destinados à integralização do capital subscrito, mas sim à formação de reserva de capital, sendo esta a ratio decidendi do julgado em questão.

Não é, como visto, a circunstância descortinada na constituição das chamadas holdings rurais, em que não se verifica a formação de reserva de capital.

Ao patrimônio das holdings rurais, repita-se, a incorporação de imóveis transmitidos pelas pessoas físicas ocorre única e exclusivamente em realização de capital, e não para outro fim, pelos valores constantes da respectiva declaração de bens, conforme expressamente determina o art. 23 da lei 9.249/95, questão, ressalte-se, não debatida no tema 796.

A tese contida no tema 796 deve ficar adstrita, destarte, ao caso envolvendo imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não são destinados à integralização do capital subscrito, e sim à formação de reserva de capital, sendo este o alcance subjetivo da repercussão geral nele vertida.

Sobre o assunto, assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

“Ementa: Direito Constitucional e Direito do Trabalho. Embargos de declaração em recurso extraordinário. Dispensa sem justa causa de empregados da ECT. Esclarecimentos acerca do alcance da repercussão geral. Aderência aos elementos do caso concreto examinado. 1. No julgamento do RE 589998, realizado sob o regime da repercussão geral, esta Corte estabeleceu que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT tem o dever de motivar os atos de dispensa sem justa causa de seus empregados. Não houve, todavia, a fixação expressa da tese jurídica extraída do caso, o que justifica o cabimento dos embargos. 2. O regime da repercussão geral, nos termos do art. 543-A, § 7º, do CPC/73 (e do art. 1.035, § 11, do CPC/15), exige a fixação de uma tese de julgamento. Na linha da orientação que foi firmada pelo Plenário, a tese referida deve guardar conexão direta com a hipótese objeto de julgamento. 3. A questão constitucional versada no presente recurso envolvia a ECT, empresa prestadora de serviço público em regime de exclusividade, que desfruta de imunidade tributária recíproca e paga suas dívidas mediante precatório. Logo, a tese de julgamento deve estar adstrita a esta hipótese. 4. A fim de conciliar a natureza privada dos vínculos trabalhistas com o regime essencialmente público reconhecido à ECT, não é possível impor-lhe nada além da exposição, por escrito, dos motivos ensejadores da dispensa sem justa causa. Não se pode exigir, em especial, instauração de processo administrativo ou a abertura de prévio contraditório. 5. Embargos de declaração providos em parte para fixar a seguinte tese de julgamento: A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT tem o dever jurídico de motivar, em ato formal, a demissão de seus empregados.” (RE 589.998 ED, relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 10/10/18, acórdão eletrônico DJe-261 DIVULG 04/12/18 PUBLIC 05/12/18) – negritado.

E outra não poderia ser a exegese, pois a aplicação ampla e irrestrita do tema 796 vai de encontro à postura minimalista adotada pelo STF em julgamentos realizados sob o regime de repercussão geral (RE 648.245/RG, rel. min. Gilmar Mendes, Julgado em 1/8/13), e poderá afetar direitos de outras pessoas, que não foram partes no processo em que se deu o julgamento, o que se afigura inadmissível, pois implicará em restrição das garantias do contraditório e da ampla defesa, bem como dos limites da coisa julgada.

Em sede de obiter dictum, é importante anotar que o entendimento firmado em repercussão geral deve ser concretizado pelos demais órgãos do Poder Judiciário, por meio de juízo de adequação da ratio decidendi da Corte Suprema nos processos de matéria constitucional idêntica, o que reforça a necessidade da correta análise do alcance subjetivo do tema 796. A propósito:

EMENTA: Agravo regimental na reclamação. Súmula Vinculante 37. Óbice ao pagamento de parcela. Ato normativo editado pelo Conselho Nacional de Justiça (resolução 133/11). Simetria constitucional entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público (CF/88, art. 129, §4º). Competência do Plenário do STF. Agravo regimental provido e reclamação julgada parcialmente procedente. 1. Não há competência originária do Supremo Tribunal Federal para solucionar, caso a caso (CF/88, art. 102, I, n), controvérsia que envolva pretensão ao reconhecimento do direito de magistrado com base na simetria entre sua carreira e a do Ministério Público (AO 2.126/PR-AgR). 2. Com a sistemática da repercussão geral, a competência do STF para julgar a matéria constitucional é exercida no representativo da controvérsia (RE 1.059.466/AL – tema 966; RE 968.646/SC – tema 976), competindo aos demais órgãos do Poder Judiciário a concretização do precedente, mediante juízo de adequação da ratio decidendi do STF nos processos de matéria constitucional idêntica. 3. A tutela jurisdicional na presente reclamatória deve ser eficaz no sentido de obstar o pagamento a magistrado de vantagem pecuniária instituída pelo Poder Legislativo à carreira do Ministério Público (SV 37), sem, contudo, esvaziar a competência do Plenário para decidir – seja na ADIn 4.822/PE, seja nos RE 1.059.466/AL e 968.646/SC – a matéria constitucional específica debatida no caso concreto. 4. Agravo regimental provido e reclamação julgada parcialmente procedente, de modo a se cassar a decisão impugnada e determinar o sobrestamento do processo em referência perante a autoridade reclamada até que sobrevenha decisão do STF na ADIn 4.822/PE ou nos temas 966 e 976 de repercussão geral (o que ocorrer primeiro), após o que, deverá ela proceder a novo julgamento da causa como entender de Direito. (Rcl 27.939 AgR, relator(a): Dias Toffoli, 2ª turma, julgado em 14/8/18, processo eletrônico DJe-216 DIVULG 9/10/18 PUBLIC 10/10/18) – negritado.

Acresça-se, ainda, que o novo Código de Processo Civil, em seu art. 489, § 1º, V, estabelece expressamente que não se considera fundamentada, sendo, portanto, nula, qualquer decisão judicial que se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

Diante, portanto, da argumentação supra, é possível concluir de forma incisiva que o julgamento do tema 796 pelo Supremo Tribunal Federal não se aplica às chamadas holdings rurais.

*Deivison Roosevelt do Couto é advogado. Especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil. Membro suplente no Conselho de Recursos Fiscais do município de Cuiabá. Sócio do escritório Prado, Scarinci & Advogados Associados S/S.

Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/332698/o-julgamento-do-tema-796-pelo-stf-e-sua-inaplicabilidade-as-holdings-rurais